RESENHA CRÍTICA: A COR PÚRPURA
RESENHA CRÍTICA: A COR PÚRPURA
O ROXO DAS NOSSAS VEIAS
Autoria de Thaís Kafuri Santana, acadêmica de Bacharelado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás) e Membro da Liga Acadêmica de Acessibilidade ao Direito (LAAD).
“Você tá dizendo que Deus é vaidoso? eu perguntei.
Não, ela falou. Num é vaidoso, só quer repartir uma coisa boa. Eu acho que Deus deve ficar fora de si se você passa pela cor púrpura num campo qualquer e nem repara.”
Provavelmente uma das cores mais enigmáticas que possuímos, o púrpura. Para os católicos, significa penitência. É a cor de nossas veias, acomodando-se por debaixo da epiderme e acompanhando todo ser humano até sua morte, quando se espalha pelo corpo e deixa exposto o maior simbolismo presente no roxo: transformação. É o cobertor que nos é entregue para nossas boas-vindas no eterno embalo da morte, antes de nos tornarmos o nada que já fomos um dia.
No livro “A Cor Púrpura”, de Alice Walker, ambientado em 1930, somos expostos à história cruel de Celie. Em uma narrativa epistolar, recebemos relatos completos sobre sua vida em primeira mão.
A presença das cartas na narrativa proporciona uma intimidade do leitor com Celie, que registra suas conversas com Deus. Apesar da simplicidade de sua escrita, que é cheia de erros gráficos e oralidades, ela revela-se uma personagem complexa e extremamente intensa.
Torturada pelo padrasto, que a abusava sexualmente, isolava do mundo exterior e lhe fazia passar por diversas gravidezes em que lhe eram retirados os filhos após o nascimento, Celie aturava esses ataques com a consciência de que estaria poupando a irmã mais nova, Nettie, de vivê-los.
Esse é apenas um dos exemplos do comportamento empático de Celie ao decorrer do livro, que demostra um surpreendente altruísmo mesmo com todas as adversidades e o abandono que sofre. Porém, eventualmente sua vida toma uma drástica reviravolta ao ser separada da irmã que tanto protegeu e dada em casamento para um fazendeiro da região. Nettie foge de casa e promete manter contato e escrever, mas as cartas jamais chegam e Celie é presenteada com mais um abandono para seu currículo.
De início, o nome dos homens do livro não é revelado. Somos limitados a uma amostra de seus comportamentos mais monstruosos, o que faz com que pareçam quase inumanos. São uma espécie à parte da humana, todos com requintes de crueldade e dispostos a destruir uma mulher. O pior: não por querer, a drenagem é natural e eles se acham merecedores de tudo que tomam. Nomes surgem conforme a evolução da narrativa, e a presença deles é um baque: desperta a consciência de que essas pessoas são comuns.
A saída de um inferno para outro não muda as condições de Celie e frustra a esperança de todos que esperavam que sua situação pudesse melhorar. Os abusos continuam, com Celie sendo submetida a um trabalho exaustivo que é dado como uma responsabilidade natural sua. Ela apanha sempre que faz algo indesejado e naturaliza essas surras, chegando a incorporar esse discurso violento como uma solução para desobediência de Sofia, a esposa de Harpo, filho do fazendeiro (para nossa satisfação: ela revida. E com força. Atitude que deixa Celie perplexa, pois resistência jamais tinha se parecido com uma opção para ela.).
Mesmo com a continuidade de uma vida sofrida, Celie se apega a uma foto de uma mulher bonita que acha em sua nova casa. A mulher é Shug Avery, a ex-amante de seu novo marido. Nasce, assim, uma paixão platônica de Celie em relação à Shug. Ela idealiza a mulher na foto, apesar de sua reputação infame e moralmente questionável.
Ao ouvirmos os devaneios de Celie em relação à Shug, há certa expectativa quando descobrimos que vão se encontrar pela primeira vez por Shug estar doente e precisando de amparo. Só que não dá para ler “A Cor Púrpura” sendo muito otimista: a primeira coisa que Shug diz quando se encontra com Celie é que ela “é feia mesmo”.
A dicotomia entre Celie e Shug é interessante, somos apresentadas a duas mulheres que cumprem todos os requisitos da tríade da opressão: ambas são negras, mulheres e nenhuma das duas são hétero. Mesmo que cumpram com a interseccionalidade de características que lhes tornam indivíduos extremamente vulneráveis, socialmente falando, são perfeitos paradoxos uma da outra. Celie é submissa, tímida, “recatada e do lar”, ao passo que Shug é impositiva, dona de uma língua afiada e opiniões desprovidas de misericórdia. Ela também possui uma carreira como cantora, é bastante famosa e uma pessoa que todos sentem vontade de impressionar.
Ainda que Shug tenha sido hostil ao encontrar Celie, a amizade das duas floresce pela persistência que Celie tem de prover cuidados a ela. É com a presença de Shug que a sexualidade de Celie floresce, e ela finalmente começa a se descobrir e se compreender como mulher lésbica. Os diálogos que dividem são sinceros e de extrema vulnerabilidade, aquecendo o coração de quem acompanha o desenvolvimento das duas, mas não esperem que elas tenham um relacionamento estável ou nada do tipo: Shug se mostra um espírito livre e desapegado dos amores que vive. Não torna o romance menos real, mas faz com que sejamos iludidas por Shug como Celie também foi.
Porém, nem tudo são flores. Por mais que o relacionamento entre Shug e Celie seja uma representação de empoderamento, também somos expostos aos sacrifícios e riscos de se resistir e lutar. Como já mencionado nesse resumo, Sofia, a esposa de Harpo, é a personagem que Celie imaginou poder corrigir o comportamento com uma surra. No fim, quem apanhou foi ele. Sofia rejeita toda opressão que tentam impor a ela, retaliando toda tentativa de agressão que recebe. Essa retaliação é perigosa: para toda resistência, há um novo ataque a ser feito.
Após reagir com desgosto à opinião (nem um pouco requisitada) de uma branca que diz que Sofia deveria “trabalhar para ela”, ela recebe uma tentativa de agressão por parte do marido dessa mulher. Ao revidar, ela é gravemente lesionada e recebe uma sentença de doze anos na cadeia, independente de sua atitude ter sido de autodefesa ou não. A humilhação se agrava mais ainda quando, pelos riscos graves que sofria estando na prisão, Sofia aceita servir a família das pessoas que a agrediram ao invés da pena encarcerada. Assim, ao lutar com uma opressão diária, ela é relegada a prática de tempos mais remotos: se encontra em um regime de escravidão que a impede de ver seus filhos e suga o que resta de sua dignidade.
Somos encarados com uma verdade dolorosa: sempre há como retroceder. Mesmo que a resistência devesse ser vista como natural do ser humano, ela tem um preço. Um preço que é delegado não só por um indivíduo, mas compartilhado com um sistema que é cuidadosamente montado para não permitir deslizes. Talvez o pior seja saber que a violência tem valores: que certos tipos de violência são mais permissivos do que outros.
Em determinado momento da história, nos é revelado que o nome do fazendeiro é Albert e que ele tem escondido as cartas que Nettie enviava para Celie. Descobrimos, assim, que ela está envolvida com missionários, e a questão racial do livro toma um rumo mais universalizado. Somos expostos à jornada de Nettie pela África e sua convivência com uma tribo vítima da exploração e da necropolítica, ou seja, da permissividade, pelo Estado, de atitudes que exterminam povos “menos valiosos” em prol do lucro. A visão africana sobre o racismo é uma surpresa agradável que provém novas dimensões para a questão que estão além da norte-americana e expõe uma dor que nem sempre é colocada sobre foco.
A descoberta das cartas de Nettie levam Celie a questionar sua fé em Deus pelo tempo irrecuperável. Por pensar que Nettie estaria morta e não ter certeza de seu bem-estar. Há um momento de dor muito grande que a leva se questionar o porquê Deus permite tamanha crueldade. Ela muda completamente como pessoa, abandona Albert e começa uma vida nova com empreendimentos. Verdades sobre seu passado são reveladas, e é descoberto que o pai de Celie não era seu pai de verdade, mas seu padrasto, e que seu pai foi morto por homens brancos por abrir um negócio que estava prosperando.
É muito doloroso se perguntar se Celie teria levado uma vida tranquila, ou pelo menos melhor, se não fosse pelo ódio desses homens brancos.
No mais: A Cor Púrpura é um livro sobre reação em cadeia e sobre resiliência. É um livro simples, porém violento, e com diversas camadas para serem dissecadas. Sua natureza agridoce arrebata corações com a dureza do ser humano, sobre como atos de crueldade reverberam durante uma vida toda e são acumulativos: ninguém esquece uma ferida aberta.
Seria possível manter nossa fé inquebrável diante de tanta catástrofe? Celie me faz querer acreditar que sim, seja essa fé em Deus, no futuro ou na humanidade.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
WALKER, Alice. A Cor Púrpura. 1. ed. Rio de Janeiro: José Olympio. 2016.